Visita ao túmulo de Machado de Assis

Aqui venho e virei. À beira
de teu túmulo uma fiandeira
como que me entrega, tecida,
tenuíssima teia - e da vida
mais clara aceitação eu posso
ter, pois do que é teu, meu, e nosso,
por ser um comum atributo,
extraio o que há de seiva e fruto,
e dou, como alimento, à alma,
que come, espanta-se, e se acalma.
Não te trago flores, ó mestre,
nem hinos minha voz campestre
é capaz de erguer a teu nome.
No entanto, mataste-me a fome
da alma, ao me deslindar a estranha
teia de almas que me acompanha.
No entanto, sem sequer pintá-la,
tua voz é que melhor fala
desta cidade onde, por obra
e graça da sorte, soçobra,
e vai existindo, e repousa-
rá o Afonso Felix de Sousa.

Toada goiana

Correr chapadas e serras
cobertas de casimira.
As noites que lá se foram
voltam dançando, e a catira
que se escuta sempre longe
é doce - ainda que fira.
O vento dá na roseira,
mas meu bem, ninguém me tira.
Quem ama, reclama e chora,
canta e suspira.
As muitas matas, as muitas
solidões ... que amor as planta?
Quero bem a uma menina
que vê-la é ver uma santa.
Deixei-a, vim correr mundo.
Agora tenho a garganta
atravessada do espinho
desta saudade que é tanta.
Quem ama, chora e suspira,
reclama e canta.
Poeira em giros vermelhos,
e o tempo já foi de lama.
Sete cravos, sete rosas -
é pouco para quem ama.
Sete cartas de lembrança -
e a ingrata, que não me chama!
Faço fé que ainda me lembra,
pois sou goiano de fama.
Quem ama, suspira e canta,
chora e reclama.
O vento vem, dá na vida.
Mas a terra - é em mim que mora.
Passarinho no coqueiro,


do meu bem fala-me agora:
se está morto, se está vivo,
se casou, se foi embora.
Vem a seca ... Vêm as águas ...
E a resposta já demora.
Quem ama, canta e reclama,
suspira e chora.

Sonetos de Olinda I

A Lúcia Dantas

Quando na praia imersa em luz termina
a inquietação de mares prisioneiros,
com três rosas na mão subo a colina
e são a brisa e o amor meus companheiros.
Tesouros que arranquei da eterna mina
da beleza - que os possa dar inteiros
a quem borda um jardim que me destina,
e espera-me, infinita, entre coqueiros.
Igrejas, casarões ... onde lembranças
de era flamenga voejam pedregosas
e tombam num tombar de paina, mansas.
Batem de novo à praia ondas raivosas,
mas dou por mim numa ilha de bonanças
e nesse oásis plantam-se as três rosas.

Sonetos aos pés de Deus I

Eu bato, eu bato, eu bato à tua porta,
bato sem ver que a porta está aberta.
Sem ver-te, sei, tua presença é certa,
e tento orar, mas minha voz é torta.
A luz que vem de ti em dois me corta,
e do que fui e sou outro desperta.
Não posso, assim, a ti dar-me em oferta,
pois já nem sei que ser meu ser comporta.
Tudo o que busco dás, dás de sobejo,
pois sabes mais do que eu o que desejo,
e estás comigo e em mim, sempre a meu lado.
Comigo estás na paz e nas pelejas.
Por tudo o que me dás louvado sejas,
por tudo o que não dás sejas louvado.

Soneto XXXVI de Íntima parábola

Senhor, que a mim de sonho e vísceras fizeste,
e me tens nu, qualquer que seja a minha veste,
sinto, desde que aqui tuas varandas varro,
ter, bem junto a meu corpo, alma também de barro.
É por isso que vou com asas rastejando,
e as plumas de meus pés as perdi não sei quando.
É por isso que pães sabendo a lama como,
quando creio colher em tua mão um pomo.
Tua presença é como a vida, é como açoite,
e vergasta-me sempre, onde quer que me amoite.
Tua presença é luz que tive entre meus braços
e, terrível, mostrou-me os meus próprios pedaços.
Senhor, alma de sóis que dão vida e a consomem,
eu não tenho perdão, eu sou carne, eu sou homem.

Soneto XXV de Íntima parábola

Deuses que resguardais lá das celestes grutas
os campos de que sou senhor e há muito lavro,
vede, se eu os semeio é fatal colher frutas
que para preservar, delas me faço escravo.
Ó deuses que me dais arriscar minha sorte,
que pouco é, quando o alcanço, o que espero ou procuro!
Como erigi no azul para a alma um contraforte,
do castelo que ergui resta ao menos um muro.
E da glória de amar resta ao menos um traço
do jardim a que dei todo o suor do rosto
e de onde as flores, quando eu perto delas passo,
fecham-se como a ver o espectro do sol-posto.
Deuses, se atiro os grãos a terra se sujeita.
Ó deuses, que há de ser ao tempo da colheita?

Soneto XX de "Íntima parábola"

O simples ser e estar na clara cidadela,
vendo em cada jardim outro jardim sonhado.
De onde instalei meu ser debruçar-me à janela
que se abre sobre o feudo instável do meu fado.
Quatro pontos cardeais . . . e estas quatro paredes
em que risco na cal rotas com que me iludo.
Recebes nas manhãs o sol qual vós o vedes,
e dar às mãos do tempo os nadas que são tudo.
Domado e solto o amor, através de uma lente
olha o infinito e alcança a mulher que quisera.
Corro ao mar a esperar que antigo mar se invente
e arroje sobre o mundo a praia e a primavera.
Bebo aos goles a vida, e nada peço mais.
Mas sempre que olho o mar, sonha um barco no cais.

Soneto XVIII de "Íntima parábola"

No campo vão pastar sonâmbulas ovelhas.
As nuvens, desde sempre os fâmulos da altura,
vão envolver o sol entre colchas vermelhas
- e em tanta paz da tarde um presságio perdura.
Do que haverá talvez por detrás do horizonte
golpes vibram, mortais, qual de um chicote eterno.
Por detrás do destino há de perder-se a fonte
que tem água do céu e tem água do inferno.
E em tudo o que hoje traz a beleza e deslumbra
o tempo há de deixar as marcas de seus dedos.
Em torno a qualquer luz sei que a espera a penumbra,
no mel de toda fruta há ressaibos azedos.
A noite já desfaz as nuvens e as ovelhas,
e a amarga flor do amor já se cobre de abelhas.

Passagem das nuvens

Os montes, ei-los. O verde
onde dormíamos. Que paz!
Que impossível! Se os buscamos,
recuam os horizontes.
Detê-lo, o carro luminoso.
Inútil: o dia prossegue.
Nas mãos, na bola de cristal,
pelo avesso o que hoje
é sonho, e em tantas
direções (não a que peço
e quero ... outras)
se perde meu destino.
E penso, pálido prisioneiro,
penso. E quanto mais sobes,
pensamento, mais preso
estou à terra.
Suaves, as nuvens fogem.
Para onde? Para onde
irão, lúcidas estradas
em vôo, os pensamentos?
Baixassem, nuvens, errante
me levassem, a alma.
Quero fugir, buscar
- até que o encontre -
o que não creio,
mas quero.
Se há deuses, me chamem.
Estou cansado e mais suave
quero o sono. Tenho fome.
Dos frutos, os proibidos,
dai-me o sabor. Que sede!
Dai-me a beber o amor,
a plenitude, e antes do sono
o pensar na vida sem dizer:


merda! merda! Dai-me o vinho
com que não me esqueça, mas cole-me
asas. Pois estou cansado.
Suavemente, as horas
fogem. Quando não mais
vivê-las, as horas fugirão
ainda. E o que me espera?
Nada, o nada. Que apelos
de amor, de vida: o nada.
Incompleta é a vida, sei,
mas são tantas as águas
da eternidade, que jorram!
Dai-me a beber, ó Deus,
ó deuses. E se há deuses,
não me abandonem.

Os mortos de Jaraguá

Eles dormem: são dóceis
farelos de alma e ossos,
e nem como fantasmas
retornam, num espasmo
do que foram. E dormem
dentro da teia enorme
dos casos de família
Ou nem isso: são ilhas
submersas no não-tempo,
em nunca mais, em sempre ...
Mas movem-se: em meus ossos,
no olhar dos filhos nossos,
Astrid, eles retomam
o ar de mulheres e homens,
e erguem-se do repouso.
Freitas, Félix de Sousa,
Amorins e Camargos,
todos fazendo carga
nos rumos do meu sangue,
todos vértices do ângulo
onde hesito, entre brumas,
entre este e aquele rumo.

Ofício de viver

O mundo que encontrei já era isso.
O jeito foi bordá-lo
com palavras.
Palavras e palavras, esta a herança
que tive e vou deixando.
O jeito foi juntá-las
untá-las
soprá-las
dobrá-las a meu jeito
Perdão ó mestres
vos dou a mão à palmatória
mas não sei ser outro, não sei
ser de outro jeito.
O mundo é isso
e o jeito é ir chutando e vou chutando
e vou driblando e vou sendo driblado
e vou caindo e vou-me erguendo e vou
e vou gemendo
atrás da bola
e a bola à frente
e ao lado a bola
e do outro lado
e nas alturas
Mestres
meus mestres

O hóspede

A estrada não tem retorno, e ele, ele
que vem de um mundo há muito esquecido
ou já desfeito em névoa, em cinzas,
ele chega e sai a saudar os habitantes
da cidade (vazia?). Ele fala, fala.
Mas sua língua, que é outra, tem o timbre
de línguas que não são mais faladas
nem mesmo por fantasmas. E estranha
que não percebam, tão perto, as paisagens
do mundo que esquecera ou se desfizera
e ele recria com olhos agora de criança.
Ele fala, fala, e estranham que não traga
no bolso a passagem de volta (para onde?).
A estrada não tem retorno, e ele se encolhe
todo, como a desculpar-se (por estar vivo?
Por ocupar um lugar no espaço?). E se recolhe
a si, definitivamente hóspede de si mesmo.

Embalo

Onde quer que estiveres
entregue ou fugitivo
verás o que não queres
na morte e no estar vivo.
Onde quer que banhares
a carne e os pensamentos
virão de outros lugares
banhar-te outros momentos.
Onde quer que dormires
será teu sono prece
que sobe em arco-íris
e sem que alcance desce.

Convite

Agora que o campo é de areia
pisemos de modo que os rastos
não nos mostrem como voltarmos.
E vamos ao mar, que derrama
sobre nós seu licor de pérola
e em mim todo um fervor de espumas.
Sei de ilhas contidas em conchas.
A elas pediremos repouso
quando a noite trouxer lembranças.
Segue-me ... e para trás deixemos
pais e irmãos, esposos e filhos,
e os cinzas gradis que nos guardam.
Depois de ao mar nos atirarmos,
qual seja o rumo a que nos leve
há de ter fim no que buscamos.

Canção do Pont Neuf

Como a juntar meus próprios ossos
debrucei-me sobre lembranças
que acreditava em frias poças
mas nunca em águas assim mansas
nem neste rio longe e próximo.
É tão bom quedar-me em tais margens
junto de águas que nunca bebo,
onde por muito contemplar-se
o céu da tarde ficou bêbado
e entortaram-se aquelas árvores.
Meu Sena amigo, tantas vezes
parei neste cais dolorido,
que uma possível correnteza
levará em meio a detritos,
toda minha alma pelo avesso.
Perguntas, silêncios e fomes
- tudo te trago qual um filho.
E algo de mim se desmorona
aqui nestas bordas tranqüilas,
pois ci-gît mon coeur vagabond
Barcos de solidões flutuam
sobre tuas noites - e afogas
louros fantasmas de uma lua
mais longínqua, mais melancólica,
mais de outro mundo do que a Lua.
De ti me abeiro, e me dissolvo,
mas nunca me sinto sozinho.
Os que têm ouvido aqui ouvem
palavras que um dia o destino
prendeu a trechos de Beethoven.


Ou são falas de amar que escuto?
Meu rio, de mim o que guardas?
Sei de meu coração sepulto
nalgum ponto de tuas margens,
mas sei que de há muito está mudo.
Em volta a cidade, profunda,
vai pelos dois lados do rio.
Para lá da cidade, o mundo.
Mais para lá, o amor que tive ...
meu rio como eu vagabundo.

A moça de Goiatuba

Em Goiatuba
tem uma moça.
Que coração grande
ela tem.
A moça de lá
é só chamar vem.
José Godoy Garcia






Mal rompeu o dia - a moça
foi levar café com leite
para o filho do patrão.
Sentada à beira da cama,
como fez sempre, esperava,
como fez sempre, que o moço
lhe reclamasse mais pão.
Mas o moço não queria
nem pão nem café com leite.
Queria - e com que paixão
dentro dos olhos! - queria-lhe
os peitinhos em botão.
Daí o moço pediu-lhe
que se deitasse com ele
um pouco ... que assim veria
como era bom o colchão.
Mas a moça riu e disse
que não tinha precisão.
pois era dia, e de noite
já tinha dormido um tantão.
Daí o moço pediu-lhe
que ela tirasse o vestido,
depois a combinação,
depois deitasse na cama,
que era bem quente o colchão.
Mas a moça riu e disse
não estar com frio não,




que o vestido que vestia,
tirar não podia não,
que a patroa foi quem disse
que devia ter vergonha
e cobrir-se com vestido,
calcinha e combinação ...
E se foi, deixando o moço
a se torcer de paixão.
E quando foram chamá-lo,
o moço tinha dormido
e não acordou mais não.
No outro dia, antes do enterro,
mal rompeu o dia - a moça
foi colher flores no mato
para enfeitar o caixão.
e a cada flor que apanhava
dizia à Virgem Maria,
ao seu bentinho e a São João
que tantas flores bonitas
o moço ao céu levaria,
mas a troco do perdão.
Pois uma das quatro velhas
que deram banho no morto,
disse que viu nos seus olhos,
quando os fecharam, o Sujo
a dançar com danação.
E a cada flor, uma lágrima
descia pelo seu rosto,
que morrer assim tão moço
como o filho do patrão
e ainda ter de curtir penas
era mais que judiação.
Enquanto apanhava flores
encontrou o pai do moço,
que também a buscar flores
foi colher consolação.
A moça, como fez sempre,
ao vê-lo estendeu a mão.
para assim, como fez sempre,
tomar bênção do patrão.
Ele tinha havia tempo
a mocinha em sua casa,
mas só agora é que dava
com seus seios em botão.
Sem largar a mão da moça
lhe pediu que ela tirasse
seu vestido de chitão,
que depois ia lhe dar
muitos de seda e sapatos
mais bonitos que os das outras
moças de todo o sertão.
Mas a moça riu e disse
que não tinha precisão.
que era até muito bonito
seu vestido de chitão.
Sem largar a mão da moça
o patrão lhe suplicava
que ela tirasse o vestido,
depois a combinação,
depois a calça, e depois
deitasse nua no chão.
Mas a moça riu e disse
que o vestido que vestia
tirar não podia não,
que a patroa foi quem disse
que devia ter vergonha
e cobrir-se com vestido,
calcinha e combinação ...
E daí se foi, deixando-o
a se torcer de paixão.
E quando foram buscá-lo
mais tarde, estava dormindo
e não acordou mais não.




"Que coisa, gente! Que coisa!
Mais parece mangação ...
De primeiro morre o filho,
depois vai, morre o patrão
de tanto pedir a gente
o que não posso dar não.
A gente quer ter vergonha,
a gente quer ter razão
e bota o vestido novo
feito para a procissão
- os homens mandam tirar,
me mandam deitar no chão.
Esses trens são mesmo uns bobos!
Chega dói no coração.
Mas não quero que eles morram,
'tadinhos! - como o patrão.
Vou fazer tudo o que pedem
na primeira ocasião."
E como as fontes que a todos
de beber sempre lhes dão
e como as plantas que os frutos
dão como consolação
e como o céu que as estrelas
dá a toda escuridão,
a moça de Goiatuba
se dava como se davam
ao sol as ervas do chão.
E os caixeiros-viajantes
e o vigário e o sacristão
e o revoltoso de trinta
e o promotor e o escrivão
e o juiz e o médico e os loucos
e o boiadeiro e o peão
e os polícias e os meninos
e o dia todo e de noite
não parava a procissão.




Era só chamar - e vinha
como se dar o seu corpo
fosse a sua religião ...
Uma vez mal se deitava
no quintal, atrás da cerca
de moita de são-caetano,
com um peão de boiadeiro
das bandas de Catalão,
sentiu uma dor doída
que lhe subia do ventre
para o peito e o coração.
Foi andando e entrou na igreja,
pois sabia que as doenças
tão feias como era a sua
não saram, mas Deus as tira
a troco de uma oração.
Ao ver que Deus era um homem
foi levantando o vestido,
mas Cristo não a quis não.
Dor tão grande que sofria
seu corpinho tamanino
nu bem no meio da igreja
como em terna adoração!
Dor tão grande! Ela só via
o Cristo, que nem os homens,
a se torcer de paixão,
e largando o crucifixo
lhe pedir, que nem os homens,
que ela deitasse no chão.
E como as fontes que à terra
as águas da terra dão
e como as plantas que os frutos
dão a quem estende a mão
e como o céu que em estrelas
se dá de noite ao sertão,
a moça de Goiatuba
deitou ... em pouco dormia
- e não acordou mais não.

Auto-Retrato

A maneira de andar,
como quem busca
estrelas pelo chão.


A cabeça a dar contra os muros.
Em cada olho, o mundo como um punhal
- cravado.


O pensamento a abrir estradas
numa várzea distante.
Os ângulos do sonho formando orlas
povoadas de fêmeas
que a meu encontro viriam
do outro lado, em lânguidas posturas.
Diante do mar, a sede, a sede,
de beber a vida em infinita viagem.
As garras do gato ante paredes impostas.
A impaciência de que chegue a manhã e a praia,
a tarde e o amor.


A maneira de andar
como a fugir dos homens
- e tê-los contra o peito.


O pensamento a tirar pedras
contra as vidraças
que guardam os produtores frios
de injustiças.


O coração que bate
ao som de fábulas.
Que bate
contra rochedos mortos
numa praia de cinza
onde palpita o primeiro amor.


O coração eterno.
A amor eterno
que bate.


A alegria! A alegria!
Íntima, espantada de si mesma, gloriosa
como palmas a se abrirem aos quatro ventos,
a alegria de sentir-me vivo, a alegria
de bicho do mato, criança, dominada,
eterna.
Ser eu.